Online Library TheLib.net » Cura e encantamento: rito, mito e psicologia
Prefácio

A noção de “cura” tem habitado a mente humana desde a mais remota antiguidade até os dias atuais. Várias práticas rituais e imagens mitológicas foram e são dedicadas à busca dessa dádiva, que, muitas vezes, é alcançada por aqueles que a procuram, embora também sejam muitos os casos em que os enfermos não a alcançam. Alguns ritos e mitos, nesse sentido, prestam um grande serviço aos pesquisadores desse tema, na medida em que propõem verdadeiras teorias psicológicas acerca da cura em suas lógicas internas.

Seja por meio de imagens rituais ou por imagens míticas, a humanidade vem demonstrando um profundo sentimento de desejo pela cura que foi e ainda tem sido expressa por imagens repletas de elementos encantados ou misteriosos, cujo princípio regenerador ainda é mal conhecido das ciências modernas.

Conforme Sêneca, “parte da cura está na vontade de ser curado” (Fedra, v. 249)*. A aceitação de que a crença de um paciente constitui um grande aliado no tratamento de uma enfermidade tem se tornado cada vez mais comum nos meios acadêmicos que pesquisam as artes da cura. É muito vago e cômodo, no entanto, afirmar que, nos casos em que a cura não foi alcançada por um paciente, o resultado negativo teria ocorrido por causa de sua pouca fé.

Essa fé começa, certamente, pela confiança do paciente no curador, mas com certeza sofre a influência da confiança ou da fé que o curador tem em que sua terapia será bem-sucedida. Fé que passa ainda pela exemplaridade transmitida pelo terapeuta, o que é provavelmente o sentido da frase “Médico, trata-te a ti mesmo” (Lucas, 4: 23)†, provérbio proferido por Jesus Cristo.

Não fosse a fé inarredável frente a enfermidades poderosas, o resultado do avanço da enfermidade seria certamente pior; a moderna psiconeuroimunologia e o estudo de práticas de mentalização curativa (uma forma de meditação) mediante neuroimagens propõem-se a explicar muitas curas “misteriosas”, ou “encantamentos” bem sucedidos, que transcendem às explicações simplistas imputáveis apenas ao “efeito placebo”.

Este livro, Cura e Encantamento, não pretende analisar casos clínicos que relatam processos de cura, mas antes buscar compreender algumas imagens e teorias – míticas e rituais – ligadas a esse processo, a fim de verificar, principalmente, suas repercussões ao longo da história de crenças e de práticas médicas ligadas à noção de encantamento, e estimar suas aplicações, objetivando fins hermenêuticos e/ou práticos. É a isto que nos propomos: analisar e criticar imagens de cura que, de algum modo, estão verdadeiramente ligadas à mente humana, estabelecendo, para isso, propostas teóricas que ponham em diálogo Filosofia e Psicologia.

Os capítulos que constituem esta obra não devem ser apreciados como mera “curiosidade arqueológica”, por assim dizer, das imagens míticas e rituais da humanidade, ou como simples textos de história da terapêutica humana, mas como busca reflexiva das possibilidades reais que o conhecimento antigo (da vida tribal ao início da modernidade) preservou acerca de princípios funcionais, psíquicos e somáticos, do processo de cura. Propomos, nesse viés, uma leitura que sugere breves sondagens de técnicas curativas antigas e entendimentos variados sobre o diálogo interior da mente humana com o corpo, contra preconceitos históricos que permeiam tais visadas. Processos esses que psicologicamente auxiliaram e seguem auxiliando os seres humanos na confrontação dos infortúnios representados por diversas enfermidades que lhes perturbam, consomem, e obstaculizam sua felicidade.

Convidamos, portanto, o leitor à apreciação crítica do livro Cura e Encantamento, dividido em sete capítulos escritos por pesquisadores de saberes variados, de diferentes partes do mundo – Cap. I: “A psicologia de cura no xamanismo”, de Luciano Coutinho (Doutor pela Universidade de Coimbra); Cap. II: “Medida e cura na coleção hipocrática”, de Edrisi Fernandes (Doutor pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte); Cap. III: “Enfermedad y cura en Euménides de Esquilo: Orestes, las Erinias y la pólis”, de Guillermo De Santis (Doutor pela Universidad Nacional de Córdoba); Cap. IV: “Sobre a noção de kúrios (eficácia) no epicurismo: filosofia e cura do temor”, de Markus Figueira da Silva (Doutor pela Universidade Federal do Rio de Janeiro); Cap. V: “Dreams, Medicine and Healing in Late Antiquity: Oneiromancy (Dream Divination) in Porphyry’s Philosophy from Oracles”, de Crystal Addey (Doutora pela University of Bristol); Cap. VI: “A cura da melancolia em Marsilio Ficino”, de Monalisa Carrilho de Macedo (Doutora pela Université Paris 1 Pantheon-Sorbonne); Cap. VII: “Práticas medicinais no alvorecer da Idade Moderna”, de João Peixe (Doutorando pela Universidade do Minho).
___________________________
*Tradução livre para “pars sanitatis velle sanari fuit”.
† Ἰατρέ, θεράπευσον σεαυτόν.

Luciano Coutinho
Edrisi Fernandes
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